Por Plúvia Oliveira* e Genderson Costa**
O que passamos, onde nós estamos e onde queremos chegar? Refletir sobre o 13 de maio de 1888, para nós que fazemos parte do movimento negro, é sempre um desafio porque temos que lutar e narrar a história a partir do nosso povo negro, fugindo daquela velha história que nos contaram na escola e na TV de que foi a princesa Izabel que libertou os negros escravizados do Brasil, e sabemos na prática que não foi isso que ocorreu.
A falsa abolição brasileira ocorreu em um contexto de pressão internacional para o fim da escravização dos negros junto aos interesses da elite brasileira do momento que vizualizava que era preciso sair daquele modelo de produção para conseguirem lucrar mais. Além disso, a organização dos negros que eram escravizados por meio dos quilombos e das revoltas pressionou cada vez mais a ruptura com o modo de produção escravista. Mas depois disso, o que aconteceu com a população negra? Quais ações e políticas foram desenvolvidas para inserir o negro brasileiro na sociedade do “trabalho livre”? E quando pensamos sobre Mossoró, o que já temos de concreto e quais caminhos podemos construir para avançar na elaboração e implementação de políticas públicas voltadas para o povo negro?
Quando olhamos para a história do pós 13 de maio de 1888, percebemos que há um incentivo por parte da elite brasileira em trazer cada vez mais europeus para ocupar os espaços de trabalho, pois não era de interesse desses qualificar a mão de obra negra. O que restou para a população negra existente foi a marginalização, a repressão e as péssimas condições de vida. Foi o que a Lélia Gonzalez apontou sobre o pós-abolição: para os negros, violência, morte, exposição dos corpos, trabalhos precarizados e pouca ou nenhuma garantia de direitos básicos. Essa realidade poderia ser algo que deveria ter ficado no passado diante dos mais de 130 anos que o Brasil aboliu a escravização de forma legal, mas que ainda é presente devido a como a elite branca brasileira agiu e age cotidianamente para manter seu status quo.
Quando olhamos para os dados que demonstram a realidade concreta da população negra brasileira, constatamos o que Silvio Almeida vem a chamar de racismo estrutural, uma estrutura social que organiza a sociedade baseada na raça e que impõe desvantagens para a população negra na política, na economia, no direito e em todos os âmbitos de organização da vida. Segundo o Atlas da Violência de 2023 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 77,1% dos homicídios de 2021 é formado de pessoas negras, ou quando olhamos a proporção de homicídios para cada 100 mil habitantes, 31 homicídios são de pessoas negras e 10,8 são de pessoas não negras. Já o relatório sobre a inserção da população negra no mercado de trabalho do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) de 2022 destacou que em 2021, negros ocuparam 47,1% dos postos de trabalho desprotegidos em contraste com os 34,7% de não negros. Ainda segundo a pesquisa, quando se trata de rendimento salarial mensal, as mulheres negras recebem em média R$1.715,00, os homens negros R$2.142,00, as mulheres não negras R$2.774,00 e os homens não negros R$ 3.708, demonstrando uma distorção salarial de mais de 100% entre mulheres negras e homens não negros. E quando observamos a distribuição e organização dos cargos de lideranças nas empresas, segundo pesquisa realizada pela Indique Uma Preta e a Cloo de 2024, negros ocupam apenas 8% cargos de liderança no Brasil em um contexto que de acordo com o Censo 2022, negros correspondem a 55,5% da população brasileira.
Quando refletimos necessariamente sobre Mossoró, que traz para si uma falsa ideia de liberdade para a população negra e que remonta da abolição da escravatura na cidade que ocorreu 5 anos antes do marco nacional, percebemos que o município só antecipou o que viria acontecer nacionalmente com o negros não mais escravizados: miséria e nenhum suporte para viver em liberdade. Ao mesmo tempo, criou-se um imaginário de uma Mossoró Libertária a qual os brancos foram os grandes responsáveis pela vitória abolicionista, narrativa muito reforçada pelos memorialistas e Câmara Cascudo, o que apagou totalmente a participação dos negros escravizados no processo da abolição, não considerando, por exemplo, a existência e atuação do Clube Spartacus para protejer escravizados fugitivos, como afirmam Marcílio Falcão, Emanol Pereira Braz e Kycya Oliveira Silva. E esse apagamento se perpetua até hoje nos festejos do 30 de setembro em Mossoró, assim como forma a qual a história é contada pelos meios oficiais. Essa falsa ideia de uma Mossoró Llibertária faz também com que seja reforçada a ideia de uma democracia racial na cidade, que não há negros em Mossoró e que não existe racismo no município, que os brancos abolicionistas conseguiram reparrar as injustiças. Mas esse imaginário e narrativa racistas vem sendo questionados e esse questionamento vem muito do acúmulo de militantes e acadêmicos a partir do final dos anos de 1990 e início dos anos 2000, a exemplo de Lenilda Souza, Nonato Santos, Augusto Pinto, Ivonete Soares através do teatro e pesquisas desenvolvidas sobre questões raciais na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).
A narrativa da Mossoró libertadora também se mostra falsa quando olhamos para os casos de racismo que são denunciados através das redes sociais que possibilitam uma maior divulgação e exposição dos crimes. É que mesmo após anos da “abolição” da escravatura, as práticas sociais continuam de maneiras semelhantes ou alternativas, ainda mais diante ao contexto em que vivenciamos um polo político-ideológico que legitima a violência racial. Macaco? Isso foi dito por uma mulher em um estabelecimento de Mossoró direcionado a um dos seguranças do local. A mulher ainda desafiou o trabalhador: “agora faça uma denúncia por racismo”. Denúncias de jovens negros sendo perseguidos e constrangidos em supermercados na cidade também é algo bem recorrente, demonstrando esse racismo velado no cotidiano. Tais situações mostram que a sociedade mossoroense ainda é um ambiente organizado por estruturas racistas e que é preciso tanto fortalecer as políticas públicas para a igualdade étnico-racial existentes, como a lei de cotas para a concursos, assim como a lei que obriga o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas, mas também é preciso construir novas alternativas que contemplem os povos de terreiro e comunidades tradicionais, que olhe para para os grupos de capoeira, que cobre a melhoria e ampliação das rotas de ônibus, que se tenha mais creches e escolas de ensino fundamental/médio nas periferias, que se incentive a capacidade criativa da juventude negra em suas localidades, que se tenha um olhar para construção de trabalhos dignos, que as Unidades Básicas de Saúde (UBS) funcionem de fato, promovam ações de prevenção das doenças e tenha equipes completas para contemplar as demandas da população, demandas urgentes para a população negra de Mossoró que são cotidianamente ignoradas, mesmo que tenhamos uma Câmara Municipal com maioria de representantes que se autodeclararem negros, demonstrando que também é preciso ter compromisso com a luta antirracista, pois o local racial a qual se está não necessariamente quer dizer que o mesmo irá defender as reividicações de interesses dos negros e negras.
Mudar a realidade concreta da população negra é algo urgente. Diante disso, é preciso romper com a ideia que o pós-abolição concedeu a liberdade em sua plenitude para a população negra brasileira. Em segundo, é importante frisar que para gerar uma ruptura com a falsa abolição, é preciso reconhecer que não há democracia racial no Brasil e isso parte de uma ação conjunta e que já vem sendo construída historicamente por muitas mãos como o MNU, o Coletivo Nacional de Juventude Negra – Enegrecer, o Grupo Ousadia Juvenil que atua no Nova Vida, em mossoró, a Louvação ao Baobá de Mossoró, Fórum de Terreiros de Mossoró, artistas locais e acadêmicos da instituições de ensino, mas é preciso também que ocorra um engajamento eficaz do poder federal, estadual e municipal. A partir dessa ação que vem se construindo é que podemos fazer com que a população brasileira reconheça que existe racismo, que esse racismo provoca desigualdades e sofrimentos para a população negra e que é preciso desenvolver e fomentar políticas públicas repressivas, valorativas e afirmativas que resguardem a população negra para sair da condição de subalternidade que hoje ainda se encontra.
Que o 13 de maio seja visto não somente como marco para denunciar o racismo, mas que também é preciso desenvolver ações efetivas que possibilitem a ascensão social das pessoas negras e que se faz também a partir da disposição orçamentária robusta voltada para o combate ao racismo e promoção da igualdade ético-racial, algo que Mossoró precisa avançar e aqui estamos para disputar as narrativas e os espaços para que isso aconteça.
* Plúvia Oliveira é Gestora Ambiental pela UERN, militante do Coletivo Nacional de Juventude Negra – Enegrecer e da Marcha Mundial das Mulheres
** Genderson Costa é Assistente Social, mestrando em Serviço e Direitos Sociais/UERN. Atualmente é Coordenador Nacional do Coletivo Nacional de Juventude Negra – Enegrecer e representante da juventude negra no Conselho Estadual de Juventude do Rio Grande do Norte
Texto incrível